As inovações tecnológicas aparecem e se aperfeiçoam do dia para noite, revolucionando completamente o cotidiano do ser humano, mediante a imersão cultural que os usos de tais tecnologias provocam na sociedade. Diante disso, observa-se que a ordem jurídica estatal não consegue regulamentar a utilização de cada tecnologia criada na intensidade e velocidade com que elas surgem, enquanto que na medida em que são experimentadas, vão surgindo conflitos jurídicos, que na maior parte das vezes não possui aparato legal explícito para suas resoluções.
Oportuno registrar que o pregão se trata de uma modalidade de licitação instituída para a aquisição de bens e contratação de serviços comuns, nos termos do art. 6º, inciso XLI da Lei nº 14.133/2021, sendo que a adoção deste procedimento está vinculada ao interesse da Administração em licitar o objeto do qual necessita, desde que compatível com a classificação definida neste dispositivo legal.
Nas palavras de Jacoby Fernandes (2006), o pregão é assim definido:
O pregão é uma nova modalidade
de licitação pública e pode ser conceituado como o procedimento administrativo
por meio do qual Administração Pública, garantindo a isonomia, seleciona
fornecedor ou prestador de serviço, visando à execução de objeto comum no
mercado, permitindo aos licitantes, em sessão pública presencial ou virtual,
reduzir o valor da proposta por meio de lances sucessivos. (FERNANDES, 2006,
p.455)
Cumpre
destacar que o pregão foi disciplinado com o objetivo de trazer a celeridade do
procedimento licitatório, maior eficiência e consequentemente economia ao
erário, visto que nesta modalidade ocorre a inversão de fases. Primeiramente
são verificadas as propostas de preços e depois a fase habilitação das
licitantes, proporcionando a otimização do tempo gasto com os certames, eis que
os documentos de empresas que não se sagraram vencedores não serão analisados.
A modalidade pregão pode ser realizada por duas formas: presencial e
eletrônica. Ressalta-se que não se tratam de duas modalidades, mas duas
subespécies do pregão. No pregão presencial, os licitantes apresentam a
documentação de habilitação e proposta comercial na sessão pública de forma
presencial. Já o pregão eletrônico tem a principal característica de não
necessitar da presença física dos licitantes, tampouco do pregoeiro, que é o
servidor responsável pela condução deste procedimento.
Acerca do pregão, Marçal Justen Filho (2005), declara sobre as duas
formas, presencial e eletrônico:
[...] a peculiaridade do pregão
eletrônico residirá na ausência de sessão coletiva, reunindo a presença física
do pregoeiro, de sua equipe de apoio e dos representantes dos licitantes num
mesmo local determinado. No pregão eletrônico, os interessados não comparem a
um certo local portando envelopes, materialmente existentes. Enfim, tudo aquilo
que se previu a propósito do pregão será adaptado a um procedimento em que as
comunicações se fazem por via eletrônica. Valendo-se dos recursos propiciados
pela Internet, cada interessado utilizará um terminal de computador,
conectando-se aos serviços ofertados pela própria Administração. As
manifestações de vontade dos interessados serão transmitidas por via
eletrônica, tudo se sujeitando a uma atuação conduzida pela pessoa do
pregoeiro. Essa atuação envolve a gestão não apenas do processo licitatório,
mas também do próprio sistema eletrônico. (JUSTEN FILHO, 2005, p.220)
É certo que a modalidade pregão eletrônico resultou em grandes vantagens
para as aquisições públicas, por utilizar a internet. No entanto,
consequentemente trouxe a problemática da utilização de softwares,
denominados robôs eletrônicos, em que durante a sessão pública, por meio desse
recurso informatizado, os lances do licitante são efetuados em milésimos de
segundo, atrelado ao ofertado pelos demais participantes, a fim de manter o
menor preço face aos outros concorrentes e aumentar as chances de lograr êxito
no certame.
A implementação do pregão eletrônico nos processos de compras públicas desburocratizou o procedimento de licitação, alçando a celeridade e a economicidade. Por um lado, trouxe a ampliação da competitividade, mas por outro, ensejou brechas que maculam o caráter competitivo da licitação, eis que, através do uso de programas de informática capazes de parametrizar o envio dos lances, frustra-se os objetivos da licitação, sendo uma verdadeira prática de concorrência desleal, pois os licitantes não ficam em pé de igualdade para competir. Segundo Vaz (2011):
O governo federal tem
conhecimento do problema. E afirma que vem tentando impedir o uso de robôs,
para garantir igualdade de condições entre os participantes da concorrência. No
entanto, não vem obtendo sucesso nessa tarefa. Ao mesmo tempo que faz um mea-culpa
por não conseguir coibir a artimanha, o Ministério do Planejamento sustenta que
a prática não é ilegal e é quase impossível eliminá-la. (VAZ, 2011)
Cumpre
ressaltar que a própria licitação é uma burocracia, necessária, capaz de
assegurar a segurança jurídica nas relações comerciais entre a Administração
Pública e particulares. O pregão eletrônico, por seu turno, fora introduzido
com a missão de desburocratizar os procedimentos licitatórios, tradicionalmente
conhecidos pelo formalismo e morosidade.
Porém,
mediante a problemática do uso dos robôs nesta modalidade de licitação,
percebe-se indícios de afrontas aos princípios constitucionais basilares.
Destarte a instituição da modalidade pregão visava em sua essência,
desburocratizar os procedimentos licitatórios, almejando a eficiência e
economia nas contratações. Todavia, torna-se temerário a busca pela
economicidade, sem o zelo pelos demais princípios norteadores do direito
público, como o princípio da legalidade, eis que este anseio desenfreado pode impregnar
a ideia de que os “fins justificam os meios”, ignorando com isso a importância
dos fundamentos substanciais do Direito.
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União defende a tese que o uso
dos robôs durante os lances do pregão eletrônico configura quebra ao princípio
da isonomia, a exemplo do precedente abaixo:
O uso de programas ''robô'' por parte de licitante viola o princípio da isonomia. Mediante monitoramento, o Tribunal tratou do acompanhamento do acórdão 1647/10, do plenário, que versou sobre a utilização de dispositivos de envio automático de lances (robôs) em pregões eletrônicos conduzidos por meio do portal Comprasnet, da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação (SLTI) do Ministério do Planejamento, orçamento e Gestão (MPOG).
No acórdão monitorado, o Tribunal concluiu que, em pregões eletrônicos conduzidos via portal Comprasnet: ''a) é possível aos usuários de dispositivos de envio automático de lances (robôs) a remessa de lances em frações de segundo após o lance anterior, o que ocorre durante todo o período de iminência do pregão; b) com a possibilidade de cobrir lances em frações de segundo, o usuário do robô pode ficar à frente do certame na maior parte do tempo, logrando assim probabilidade maior (e real) de ser o licitante com o lance vencedor no momento do encerramento do pregão, que é aleatório; c) ciente dessa probabilidade, que pode chegar a ser maior que 70%, o licitante usuário do robô pode simplesmente cobrir os lances dos concorrentes por alguns reais ou apenas centavos, não representando, portanto, vantagem de cunho econômico para a Administração''.
Para o relator, os fatos configurariam a inobservância do princípio constitucional da isonomia, visto que ''a utilização de software de lançamento automático de lances (robô) confere vantagem competitiva aos fornecedores que detêm a tecnologia em questão sobre os demais licitantes'', sendo que as medidas até então adotadas pela SLTI/MPOG teriam sido insuficientes para impedir o uso de tal ferramenta de envio automático de lances.
Além disso, como as novas
providências para identificar alternativa mais adequada para conferir isonomia
entre os usuários dos robôs e os demais demandariam tempo, e a questão exigiria
celeridade, entendeu o relator que MPOG poderia definir provisoriamente, por
instrução complementar e mediante regras adicionais para a inibição ou
limitação do uso dos robôs, de maneira a garantir a isonomia entre todos os
licitantes, nos termos do art. 31 do decreto 5.450/05, razão pela qual apresentou
voto nesse sentido, bem como por que o tribunal assinasse o prazo de 60 dias
para que a SLTI implementasse mecanismos inibidores do uso de dispositivos de
envio automático de lances em pregões eletrônicos conduzidos via portal
Comprasnet, no que foi acompanhado pelo plenário. (Acórdão 2601/11-Plenário,
TC-014.474/11-5, rel. min. Valmir Campelo, 28/9/11).
Nota-se nos julgados do Tribunal de Contas da União a repulsa pela utilização dos robôs na modalidade pregão eletrônico, mesmo diante da ausência de norma que trate da ilicitude desta ação, tratando-se de uma ilegalidade o uso de tais artimanhas, fato que se depreende no Acórdão 1216/2014 (TCU - Plenário):
A utilização
de software de remessa automática de propostas comerciais pelos
licitantes conduz à vantagem competitiva dos fornecedores que detêm a
tecnologia sobre os demais licitantes. Embora não haja vedação expressa, nas
normas que regulamentam o pregão, do uso desse tipo de ferramenta, o órgão ou
entidade responsável pela condução do certame deve, em observância ao princípio
da isonomia, implementar mecanismos inibidores dos efeitos nocivos que o envio
automático de lances pode criar no ambiente concorrencial dos pregões
eletrônicos.(Acórdão 1216/14-Plenário, TC- 001.651/14-5, rel. min.
Ana Arraes,14/5/14).
Destarte, o
Tribunal de Contas da União, considera tal prática como ilegal, ainda que não
tenha sido disciplinada uma lei específica para proibir, ou regular a
utilização dos robôs na fase de lances do pregão eletrônico.
Ademais, a utilização de artifícios na fase da disputa ofende a isonomia entre os participantes do processo licitatório, conferindo o beneficiamento de um licitante em detrimento aos outros. Por conseguinte, o uso de software robô nas sessões públicas do pregão eletrônico, remove dos demais concorrentes chances reais para disputarem na fase dos lances, fato este que resulta em efetiva vantagem para aquele que emprega esse recurso. Dessa maneira, constatado uma vantagem desproporcional no certame, aniquila-se a competitividade, violando também fundamentos primordiais da Administração Pública como a impessoalidade, razoabilidade e proporcionalidade.
Para Bortolotto (2019) a “utilização de robôs é uma pratica usual no mercado, onde o acesso não é restrito e sua contratação não se mostra economicamente inalcançável por pequenas empresas”, discorre ainda que:
A utilização se mostra apenas uma substituição da mão de obra humana pela tecnologia. Acontecimento mais que normalmente em nosso sistema capitalista, onde antes se fazia necessário uma equipe de pessoas e hoje, substitui-se pela utilização da máquina.
Além disso,
este software tem como objetivo propiciar segurança ao seu usuário na
medida em que a sua utilização evita o erro de digitação dos lances e
proporciona ao competidor um melhor posicionamento de preços entre licitantes
remanescentes que ainda não atingiram seu preço limite. (BORTOLOTTO, 2019)
Em decisão inusitada, a Primeira Câmara do Tribunal de Contas do Estado
de Minas Gerais – TCEMG, admitiu a utilização de software robô
em licitação do governo estadual. Este entendimento foi proferido na análise
da Denúncia nº 1.066.880, referente
ao Pregão Eletrônico 46/19 da Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds),
cujo objeto da licitação era fornecimento de refeições e lanches às unidades
prisionais de São João del-Rei e Resende Costa.
Assim sendo, foi vencedor o entendimento proferido pelo Conselheiro Sebastião Helvécio, na qual manifestou em seu voto não encontrar impedimentos legais para a utilização da robótica na realização de lances em pregões eletrônicos. Frisa-se sua declaração:
Portanto, peço vênia ao
eminente Relator, Conselheiro Adonias Monteiro, para darmos, neste momento, um
passo histórico no Tribunal de Contas de Minas Gerais. De modo pioneiro,
reconhecer a importância dessa tecnologia da informação no processo licitatório
e estimular a utilização dessas ferramentas, que, na verdade, dão celeridade à
decisão. (Denúncia nº 1066880 -
Primeira Câmara, rel. cons. subst. Adonias Monteiro,18/6/19).
O Conselheiro
enfatizou em seu voto sua posição favorável ao uso das tecnologias na
Administração Pública, declarando não encontrar indícios de falta de
competitividade no processo, sendo que os princípios da economicidade,
celeridade e eficiência devem ser sopesados em conjunto com o da isonomia.
Neste sentido Sebastião Helvécio afirmou:
A utilização
de software nada mais é do que mecanismo de eficiência para baixar os
lances rapidamente. Penso que, cada vez mais, é necessário não temer a inovação
no serviço público, utilizando-se a tecnologia em benefício da sociedade.
Tratando a questão de processos licitatórios, a otimização trazida pelo uso da
robótica favorece a celeridade e eficiência, princípios caros à Administração
Pública. (Denúncia nº 1066880 -
Primeira Câmara, rel. cons. subst. Adonias Monteiro, 18/6/19).
Pois bem,
licitação é sinônimo de competição, por meio de um embate isonômico, onde todos
os interessados possam disputar o contrato com o ente público. Sendo assim,
este procedimento visa a ampliação da competitividade, satisfazendo com isso o
interesse público, à proporção que enseja uma disputa acirrada, com fincas a
selecionar a proposta mais vantajosa em qualidade e economia.
A competitividade no certame licitatório relaciona-se em assegurar igualdade de condições aos concorrentes, fomentando que dela participem o maior universo de licitantes. Por sua vez, o princípio da competição encontra-se respaldo no princípio da livre concorrência, pertencente ao ramo do Direito Econômico, nos termos do art. 170, inciso IV [1] da Constituição da Republica Federativa do Brasil l.
No mesmo sentido, a Carta Magna alude sobre um dos alicerces da licitação, o princípio da igualdade, expresso no art. 37, inciso XXI, que prevê que o processo de licitação pública deve assegurar igualdade de condições a todos os concorrentes, impedindo assim, o estabelecimento de condições de preferências de um em prejuízo de outrem.
O art. 5º da Nova Lei de Licitações aduz sobre a observância do princípio da igualdade na aplicabilidade da referida legislação. Nesta senda o art. 11, inciso II da Lei 14.133/21, declara que o processo licitatório tem por objetivo a garantia da isonomia e da justa competição, in verbis:
Art. 11. O processo licitatório
tem por objetivos:
I - assegurar a seleção da
proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a
Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto;
II - assegurar tratamento
isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição;
[..]
No mesmo
sentido ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (2002):
O princípio da igualdade
implica o dever não apenas de tratar isonomicamente todos os que afluírem ao
certame, mas também o de ensejar oportunidade de disputá-lo a quaisquer
interessados condições de garantia.
É o que prevê o já referido
art. 37, XXI, do Texto Constitucional. Aliás,
o § 1º do
art. 3º da
Lei 8.666 proíbe que o ato convocatório
do certame admita, preveja, inclua ou tolere cláusulas ou condições capazes de
frustrar ou restringir o caráter competitivo do procedimento licitatório e veda
o estabelecimento de preferência ou distinções em razão de naturalidade, sede
ou domicílio dos licitantes, bem como entre empresas brasileiras ou
estrangeiras, ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante
para o objeto do contrato. (MELLO, 2002, p. 474)
Em virtude disso, tencionado pela lisura do certame, do mesmo modo que
objetivava trazer mais igualdade na participação dos fornecedores que disputam
a prestação de bens e serviços para Administração Pública Federal, na Câmara
dos Deputados tramitou os projetos de leis nº 1592/2011 e nº 2631/2011 para
proibir o uso de robôs, softwares e programas de lances nos
pregões eletrônicos, todavia, tais projetos não seguiram em frente.
A proposta tipificava como crime a utilização dos robôs, na qual o seu
descumprimento deixaria o participante impedido de fazer contratos com a Administração
Pública por até dois anos, sujeitos também à prisão de seis meses a dois anos e
multa.
O autor do projeto PL nº 1592/2011, o deputado Geraldo Resende (PMDB-MS), na justificação do referido Projeto de Lei, ressaltou que uso dos robôs não gera prejuízo para a Administração Pública, porém ocasiona outro problema:
Esse fenômeno recente não
representa diretamente prejuízo aos interesses públicos, mas introduz uma
quebra na igualdade entre os participantes, visto que nem todas as empresas têm
acesso aos robôs, e mesmo que o tivessem, iria sempre prevalecer a empresa com
tecnologia mais moderna. (Projeto de Lei nº 1592/2011, autor Geraldo
Resende,14/6/11).
Por conseguinte, clarividente o uso de artifícios de software no
pregão eletrônico, compromete o tratamento igualitário na sessão de lances, eis
que ofusca uma real isonomia entre os participantes do certame, frustrando a
competitividade e suprimindo a ampla concorrência no processo de licitação.
Em que pese ser essencial a obtenção da eficiência nas contratações públicas, esta não pode ser angariada em sacrifício dos demais fundamentos que orquestram o Direito Administrativo. Neste caso, a desburocratização tem o condão de proporcionar a flexibilidade das formalidades administrativas, fato que se torna essencial na seara pública, desde que realizada de maneira ponderada.
Observa-se pela análise dos julgados retromencionados, que não há um
entendimento pacificado na jurisprudência e na doutrina relativo à utilização
de robôs em procedimentos licitatórios, sendo perceptível um posicionamento
destoante entre os Tribunais de Contas ora analisados.
Isto posto, a utilização de tais tecnologias merece cautela, bem como critérios bem definidos, eis que tal ferramenta de software pode violar princípios fundamentais para a licitação, como o princípio a isonomia e da competição, tratando-se de um problema para o qual o autor deste artigo não tem a pretensão de propor uma solução definitiva.
Portanto, é notório que o uso das tecnologias se tornou cada vez mais necessário em uma sociedade imersa nesta nova realidade digital, nas quais inegavelmente são facilitadoras de várias tarefas humanas.
Entretanto, faz-se mister que o
legislador brasileiro esteja constantemente conectado aos embates oriundos da
utilização destas plataformas tecnológicas, a fim de ser definida uma
regulamentação, ainda que principiológica, quanto aos limites de tais
ferramentas.
[1] “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
IV - livre concorrência;” (BRASIL, 1988)
Publicado por Carlos Almeida.
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